terça-feira, 21 de outubro de 2014

o abandono como morada



Noite sem lua, uma porta retrato de samba sem cuíca

 

(o primeiro abandono)

 

poucos carros ainda estão nas ruas...

-- Alô?! pode me mandar um táxi?

-- posso! ... CINCO REAIS???!!! Você fica por aqui.

 

 (o segundo abandono)

 

uma

duas

três 

quatro

...mensagens (brigas, fim de bateria)

 

(terceiro abandono)

 

uma localização

 o chão some

(um encontro que não se quer)

 

a fé...o desespero... a dor...

 

o abandono tem feito morada em mim

 

até quando a liberdade será castigada?!!

não sei..., mas também não tenho ela em gaiolas

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O SALTO ALTO

O salto alto

 (Para ler ouvindo Ana Larousse- A menina que se apagou)

Eluhara Resende


São três horas da manhã e Marina não consegue dormir devido à sensação de vazio que se instaura. O vazio vai do fio de cabelo, percorre todo o seu corpo, dá um nó no estômago e vai até dos dedos dos pés no qual o pé direito de encontra com todos os dedos tensionados, dedos que se dobram em direção ao chão com tanta força que se caminhar rápido demais é possível que perfurem todo o chão da casa.

Quando era pequena, certa vez ouvira alguém dizer no rádio : “ é preciso preencher o vazio, antes que o vazio te preencha “ . Achou bonito, mas não entendia bem, pois para ela vazio era sinal de fome e fome a gente comia e passava. Assim, não gostava de se imaginar sendo comida pela fome.

Resolveu logo que aquele vazio iria embora e enfim poderia dormir. Foi até a cozinha-que não era longe... Afinal a casa era pequena demais para grandes deslocamentos- devagar para que seus pés não se afundassem no assoalho de madeira.

Abriu a geladeira na esperança de que aquele pedaço de bolo que havia sobrado de seu aniversário ainda estivesse ali, mas não estava. Se lembrou que ela mesma o tinha comido à algumas semanas ou até mesmo anos atrás, mas antes que terminasse esse pensamento, a constatação que a geladeira estava tão vazia quanto ela a amedrontou e imediatamente fechou a porta antes que a imagem do vazio impreguinasse em sua mente, bastava senti-lo não queria vê-lo.

Caminhava de um lado para outro e ouvia o barulho ensurdecedor que seus pés faziam no chão, pensou que nesses momentos o bom mesmo seria conversar com a família e distrair o vazio. E assim pediu a benção de cada retrato na parede: da mãe, do pai, dos avós maternos e paternos e de todos os dezoito tios e tias; E como ninguém continuou a conversa voltou a andar.

O chão já não era tão rígido, tinha uma consistência melequenta e molhada, por alguns momentos acreditou que ela estivesse derretendo e enquanto verificava cada parte do corpo pode respirar aliviada ao se dar conta de que era simplesmente a chuva que caia dentro da casa pelos buracos causados pela ausência de algumas telhas.

Pela janela via o movimento dos carros e os faróis ofuscavam sua visão, eles cruzavam entre si em alta velocidade e todas as luzes da cidade estavam acessas. Parecia que naquela noite ninguém havia dormido. Gatos perseguiam e corriam atrás de cachorros que se escondiam no alto das copas das árvores, apavorados com os miados agudos que vinham dos adoráveis animais.

Mas lá dentro o silêncio pairava, era como se a casinha de barro mal acabada e sem algumas telhas – frestas que recebiam não só chuva, mas também a luz que vinha de fora- isolasse todo o som ou o mundo lá fora...

Marina não tinha vontade de sair, estava confortável como sempre, dentro de casa com o seu vazio.

De repente percebeu que do outro lado da rua havia uma Menina, de cabelos negros, mais ou menos de sua altura e de pele tão clara que seria possível confundi-la com uma névoa; A Menina sorria. Um sorriso tão sincero, branco e grande que Marina mal podia olhar, pois não sabia como seus dentes amarelados poderiam retribuir. Se olharam por um bom tempo e o sorriso não diminuía e nem se quer se alterava, e Marina já se sentia a vontade com ele quando a Menina aos poucos começou a caminhar em direção a janela e lá estavam finalmente frente a frente.

A Menina de olhos ávidos a convidava com o olhar a ir para fora. Conseguia ver o reflexo de si naqueles olhos, que olhavam com tanta intensidade que se desse um passo em direção a janela seria possível mergulhar neles.

 Não tinha como negar... Em um ímpeto tentou saltar pela janela, mas constatou da pior maneira possível, que estava fechada, na mesma velocidade correu até a porta que também se encontrava fechada, procurou no criado-mudo ao lado, as chaves, mas não encontrou. Marina corre de um lado para outro, retira todas as gavetas de todos os armários, papeis, objetos velhos, óculos, tudo voava pela casa...em algum lugar ela acreditava que haveria uma chave. Se lembrou da brincadeira de infância de esconder pedrinhas que a mãe sempre fazia com ela, e pensou que talvez a mãe tivesse de novo escondido e correu até os parentes, um por um os quadros eram atirados ao chão , os dos dezoito tios inclusive.

A brincadeira não tinha graça e a raiva que sentia deles começava a consumi-la, o barulho dos seus pés no chão se tornava cada vez mais insuportável. Não havia chaves naquela casa... Afinal ninguém entrava ou saia de lá há muito tempo, e as chaves nunca foram necessárias antes.

Olhou novamente para a janela e a Menina ainda estava lá inalterável, só observando o seu desespero, era como se soubesse de tudo o que se passava lá dentro.

Em meio à chuva, toda molhada, cabelo escorrido no rosto e ainda assim era impossível não olha-la...Marina queria sair, queria de fato encontra-la, achou que se gritasse,alguém a ajudaria a sair dali e assim se preparou para o grito, inspirou, expirou, INSPIROU novamente e... pensou no que de fato gritaria, não fazia sentido pedir socorro, afinal estava dentro da própria casa e quando explicasse o que pensariam,é que era louca, afinal onde já se viu uma porta sem chave?

A Menina mudava de janela na mesma velocidade que Marina tentava alcança-la, aliás, pela primeira vez havia reparado na quantidade de janelas que existiam naquela casa, quatro ou cinco, mas era inútil, nada se movia além dela dentro da casa. Teve uma ideia, escalaria a parede até o buraco das telhas e pelo teto finalmente conseguiria a liberdade, tirou a sandália e amarrou as pontas do vestido na cintura, afastou-se para tomar impulso e foi.... Mas não teve coragem de saltar, no momento do salto a voz do pai ecoou em sua mente: “Não pule do sofá você pode perder uma perna”, e se o sofá causaria tamanho dano, imagina se caísse do teto, teve medo e desistiu.

Sentou-se em frente a uma das janelas e fixou o olhar na Menina e como se tivessem aberto uma torneira começou a derramar,pelos olhos e em palavras:

“Eu já estava conformada de viver aqui, com meu vazio, com o vazio da geladeira, com o vazio do estomago, da casa, os carros passavam ai fora e eu aqui dentro, eu só ouvia meus dedos, agora ouço toda a minha família, ouço o mundo, faça isso faça aquilo, arrume isso, corra pra lá, volte pra cá, aliás não corra, não salte, volte aqui, arrume o cabelo, vista essa roupa, goste de tais pessoas, diga oi, bom dia , como vai? e não espere a resposta, diga que bom mesmo se não estiver, sorria ao acordar mesmo quando seu cabelo estiver mais armado que a vassoura de palha da sua avó, aprenda a cozinhar ponha sal, tire o sal, deixe em banho maria, não perca meias no meio da cama, coloque os sapatos sempre no mesmo lugar, tome três banhos por dia, não durma tarde, não acorde tarde, goste de quem eu gosto que goste de você, coma devagar, beba devagar, ande depressa, use rosa, rosa é cor de menina, azul menino , não fale alto, não estenda as mãos, você vai se casar e ter cinco filhos, na sua casa tem que ter um quarto pra sua mãe e pra toda a família, estude, mas não demais, não ouça essas músicas, desligue o rádio e jamais olhe pela janela.”

E Marina olhando pra janela sorriu para a liberdade que jamais teve, a Menina olhou no fundo de seus olhos e pela primeira vez em horas disse algo: “ Vem ...Salta!”

Se afastaram.

(no radinho de pilhas o locutor fazia a contagem regressiva para soltarem os fogos para um novo ano)

Nove

Oito

Sete

Seis

Cinco

Quatro

Três

Dois

Um

(feliz ano novo)

Correram uma em direção a outra na maior velocidade que conseguiam e saltaram (ouve-se um forte barulho de estilhaço de vidro quebrando e fogos de artifício) finalmente se encontraram....

EXPIRARAM.